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segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

OS TRES PORTOES

Bhagavad-gita

Um verso muito importante do Bhagavad-gita* diz o seguinte: “Há três portões que conduzem a este inferno — a luxúria, a ira e a cobiça. Todo homem são deve afastar-se destes desvarios, pois eles conduzem à degradação da alma” (BG 16.21). É a conclusão de uma fascinante descrição que Krishna faz acerca da mentalidade demoníaca e de seus efeitos e causas, que começa no verso 16.7. Essa descrição existe não para apontarmos o dedo para o outro em reconhecimento delas, mas para reconhecermos em nós mesmos essas falhas, e assim começar o processo de cura.
Devemos seriamente pesquisar e praticar esse processo de cura, se estamos realmente interessados em avançar espiritualmente ou, para usar um termo comum hoje em dia, seguir adiante no nosso processo de ascensão. Krishna aqui deu-nos o caminho das pedras ao mostrar o caminho inverso, o da degradação da alma. Da mesma forma que se usa a própria causa da doença para encontrar ou desenvolver o seu antídoto, assim também podemos pegar esses três poderosos vírus da alma para encontrar seus respectivos antídotos.
Começando de trás para frente, vamos primeiro meditar em cobiça. Cobiça (lobha, em sânscrito) é o desejo de obter o domínio ou posse de coisas para si mesmo, para seu prazer egocêntrico. Infelizmente, nossa sociedade consumista gira em torno desse princípio e a todo lado somos bombardeados com impulsos que reforçam essa doença da alma. O contrário da cobiça, seu antídoto mais forte, é a caridade. Krishna explica no Bhagavad-gita (18.3) que nunca se deve abandonar a caridade, não importa quão avançado estejamos em auto-realização. A caridade é um ponto central dos ensinamentos do Senhor Jesus, como também foi do Profeta Maomé.
Agora que temos o remédio, precisamos saber como aplicá-lo. Krishna explica que existem diferentes tipos de caridade (de acordo com os modos da natureza material) nos versos 17.20-22 do Bhagavad-gita: “A caridade dada por dever, sem expectativa de recompensa, no local e hora apropriados e dada a alguém digno, está no modo da bondade. Mas a caridade executada com expectativa de alguma recompensa, ou com desejo de resultados fruitivos, ou com má vontade, diz-se que é caridade no modo da paixão. E a caridade executada em lugar impuro, em hora imprópria e feita a pessoas indignas ou sem a devida atenção e respeito, diz-se que está no modo da ignorância.” Acima disso, Ele explica que o ato de caridade feito sem fé no Supremo é inútil, tanto nessa vida como na próxima (BG 17.28). Indo mais além, Srila Prabhupada sempre nos mostrou e ensinou que a maior caridade de todas é ajudar os demais no avanço espiritual. Da mesma forma que estamos sendo constantemente influenciados a praticar a ganância, devemos igualmente ficar constantemente meditando na caridade, se quisermos combatê-la completamente. Não basta dar algum dinheiro para uma instituição beneficente uma ou outra vez por mês ou dar esmolas no semáforo. Devemos mesmo praticar o mais elevado nível de caridade constantemente, ao estar sempre meditando em como podemos usar cada momento que estamos vivendo e tudo que possuímos para ajudar o próximo a avançar espiritualmente.


O segundo portão da consciência demoníaca é a ira (krodha, em sânscrito). Nos versos 2.62-3 do Bhagavad-gita, Krishna explica como surge a ira: “Enquanto contempla os objetos dos sentidos, a pessoa desenvolve apego a eles, e de tal apego se desenvolve a luxúria, e da luxúria surge a ira.” Portanto, a luxúria e a ira agem juntos. É dito que a ira é o irmão caçula da luxúria. Se quisermos evitar a ira, devemos, antes de tudo, evitar a luxúria, o portão infernal mais difícil de se evitar. A outra forma de combater a ira é cultivando seu antídoto: a paz. Mesmo não podendo evitar a luxúria por completo, podemos ficar cientes de nossos estados psíquicos e atentos ao surgimento de algo tão maléfico quanto a ira. A ira é facilmente reconhecida, ao passo que a luxúria pode ser bastante sutil. Krishna explica no Gita, no verso 3.40, que a luxúria se permeia por nossos sentidos, mente e inteligência, tornando-a um inimigo formidável. A ira, por outro lado, pelo menos em sua forma manifesta, é muito fácil de detectar, o que nos permite, com um mínimo de vigília ao nosso estado de consciência, impedi-la de seguir seu curso de ação na forma de palavras estúpidas e grosseiras ou atividades destrutivas, intencionando a dor de um outro ser ou até de nós mesmos.
Cultivar a paz significa cultivar um estado mental equilibrado, livre de agitação excessiva. Muitos fatores influenciam o estado mental. Um dos mais importantes é a dieta, quem a preparou, como também onde e como foi feita a refeição. Outro fator muito importante é o tipo de música ou imagem que se absorve no dia a dia. Muitas músicas populares e praticamente tudo que se vê na TV (até mesmo noticiários tem sido identificados como fontes de medo e estresse na vida moderna) agitam nossa mente de forma muito intensa. Já foi cientificamente comprovado que fazer exercícios físicos é muito importante para manter um estado mental saudável, especialmente aqueles que trazem uma certa sabedoria holística de bem-estar, como caminhadas em lugares agradáveis, yoga e certas práticas de arte marcial como Tai Chi Chuan. Certos fatores são mais difíceis de evitar, como a poluição sonora e atmosférica das grandes cidades, ou ainda ambientes de competição, frustração e infelicidade no local de trabalho. Em todo caso, devemos ficar cientes que temos o poder de trazer a paz para nossa vida ao ajustar a forma em que vivemos e especialmente a forma em que interagimos com o mundo. Na medida que cultivamos a paz, fecharemos o portal da ira não só na nossa vida, como também ajudaremos a fechá-lo para os outros. Como a ira, a paz é contagiante e influencia aqueles a nossa volta.
O primeiro e mais largo portal para a consciência infernal é a luxúria. Infelizmente em nossa atual sociedade, o termo luxúria foi ridicularizado como algo careta e repressor. Algo bobo, ingênuo, que não é mais aplicável em nossas modernas, divertidas vidas de liberdade plena, livre da opressão das religiões. O resultado se vê a nossa volta na forma de um mundo a beira de um cataclismo ecológico e/ou econômico, acelerada degradação social, etc.
A luxúria não significa simplesmente desejar sexo. Luxúria significa desejar se satisfazer, para o prazer egoísta, indiferente do que isso implica para os outros. Significa colocar a satisfação imediata de seus sentidos acima de qualquer outra consideração, inclusive de sua própria saúde mental e física, o que dizer do bem-estar de outros. Luxúria significa que quero usar a realidade, tanto os recursos materiais como as pessoas a minha volta, exclusivamente para resolver minhas questões egocêntricas. Eu, eu, eu! Abusar dos outros, ferir sentimentos, ignorar a moralidade, destruir o planeta… Nada disso é um obstáculo para as atividades da luxúria. Nem mesmo o infanticídio (aborto) e genocídio são levados em consideração sob a influência da luxúria. Se o aborto irá trazer mais oportunidades para o prazer egocêntrico da mãe, então por que não realizá-lo? Se nossa comunidade terá mais oportunidades para o prazer egocêntrico destruindo um rio ou floresta e assim matando todos os animais que dependem dele, porque não seguir em frente? Assim funciona a consciência demoníaca infernal sob a influência da luxúria.
Sendo a luxúria o vírus mais poderoso da consciência, não é de se surpreender que seu antídoto também seja o remédio mais poderoso de todos: o amor. Amor significa agir para o bem do amado, totalmente livre de qualquer consideração pessoal. Cada gotinha de consideração pessoal é uma gotinha de luxúria que enfraquece o amor. O grande segredo que temos que redescobrir é que não há nada mais agradável para nós mesmos que agir em puro amor, e nada mais desagradável que agir em pura luxúria. Ou seja, na medida que agimos sem pensar em nossa egocêntrica satisfação, mais satisfação obtemos! É algo aparentemente contraditório, mas a inescapável e maravilhosa verdade acerca da realidade criada por Deus. Nossas vidas oferecem ilimitadas oportunidades de praticarmos o amor puro, não só em relação a todos que cruzam nossa trajetória de vida, inclusive os que apenas aparecem por um breve momento numa fila de banco ou nos corredores, mas também em relação a todos seres vivos do planeta, na maneira que nos comportamos em relação à Mãe Terra (Bhumi Devi, em sânscrito).
Não é preciso muita reflexão para compreender que qualquer ato antiecológico, como consumo desnecessário de plásticos, a compra de alimentos desnecessariamente industrializados, o desperdício de água ou energia elétrica, etc. é um sintoma de luxúria, uma falta de amor. Isso porque estamos agindo pensando em nosso imediato prazer e bem-estar e ignorando o nosso próprio bem-estar futuro ou de gerações futuras, e o bem-estar de Bhumi Devi. A conclusão inevitável é que agir de forma antiecológica é um sintoma de falta de avanço espiritual.
O Senhor Sri Krishna Caitanya Mahaprabhu disse: “prema pum-artho mahan” – o amor é o objetivo último do ser vivo. O amor por si só é um remédio tão poderoso que não só acaba com a luxúria, mas com todos os demais vírus da consciência, da mesma forma que um antibiótico muito poderoso, feito para acabar com o pior tipo de bactéria, acaba com as demais bactérias mais fracas também. Assim, a prática do amor é absolutamente indispensável e importante para todos aqueles que desejam atingir a consciência divina e, como tal, precisa ser praticada constantemente.
É preciso sempre estar consciente das nossas motivações em tudo que façamos. Precisamos ter muito cuidado para detectar a motivação egoísta e, portanto, luxuriosa, em nossos atos e relacionamentos. Como dito antes, a luxúria é muito sutil e permeia toda nossa existência material. Assim sendo, é necessário um nível de atenção muito elevado e refinado para detectarmos sua presença. Isso não é fácil e não acontecerá do dia para noite. É tarefa mesmo para o resto de nossas vidas condicionadas!
Praticando bhakti-yoga, de forma imotivada e constante (ahaituky apratihata – Srimad-Bhagavatam 1.2.6), automaticamente nos situamos longe desses três portões da consciência infernal, pois bhakti é justamente a ciência da consciência, a técnica que limpa nosso coração (ceto-darpana marjanam – Siksastaka 1) ao direcionar nossa consciência rumo ao Divino. Esses três poderosos remédios, amor, paz e caridade, surgem no decorrer de uma prática eficaz e sincera de bhakti-yoga. Cabe-nos apenas cultivá-los ao máximo para fortalecer nossa prática e encurtar nossa volta ao lar, ao Supremo, ou seja, nossa volta à consciência divina.
* Traduções tiradas do Bhagavad-gita Como Ele É, de Sua Divina Graça A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada, fundador-acharya da ISKCON.